LITERATURA DE CULTO 21: A MORTE MELANCÓLICA DO RAPAZ OSTRA E OUTRAS ESTÓRIAS
Nas dunas, pediu-lhe casamento,
à beira-mar se casaram.
Na ilha de Capri celebraram
esse tão grande momento.
À ceia jantaram um prato sobejo;
uma bela caldeirada de peixe e marisco.
E, enquanto ele saboreava o petisco,
no seu coração ela pediu um desejo.
O seu desejo tornou-se realidade: teve um bebé.
Mas seria um ser humano?
Pois é,
na verdade,
tinha dez dedos nos pés e nas mãos,
tinha visão e circulação.
Podia ouvir, podia sentir,
mas seria normal?
Isso não.
Este nascimento aberrante, este cancro, esta praga
foi o princípio e o fim de toda uma saga.
Ela zangou-se com o doutor:
"Esta criança, não é minha.
Cheira a maresia, a salmoura e a tainha."
"Olhe que tem sorte, ainda a semana passada
tratei de uma miúda com crista e rabo de pescada.
Se o seu filho é meio ostra
não me venha acusar...
...já pensou por acaso
numa casinha à beira-mar?"
Sem saber que lhe chamar,
chamaram-lhe Alves,
ou, às vezes,
"aquela coisa da espécie dos bivalves."
Toda a gente se perguntava, mas ninugém sabia
quando é que da concha o Rapaz Ostra saía.
Quando os quatro gémeos Lopes um dia o foram ver,
chamaram-lhe amêijoa e desataram a correr.
Num dia azarado,
Alves ficou encharcado
à esquina da rua Miramar.
Cabisbaixo,
viu a chuva rodopiar
pela sarjeta abaixo.
Na auto-estrada, a sua mãe,
à beira de um esgotamento,
esmurrava o painel dos instrumentos -
não conseguia conter
a dor crescente,
a frustração
que a fazia sofrer.
"Olha, querido", disse ela,
"isto não é para ter piada,
mas eu já não pesco nada
e acho que é do nosso filho.
Não gosto de o dizer, pois sou a mulher que te ama,
mas tu culpas o nosso filho pelos teus problemas na cama."
Ele bem se aplicou, com muito denodo;
tentou salvas e unguentos
que lhe faziam comichões,
tintura de iodo,
mezinhas e poções.
Coçou-se e sangrou e esmifrou-se todo.
Até que o médico diagnosticou:
"Eu não sei de ciência,
mas a cura do seu problema pode ser o que o causou.
Dizem que comer ostras aumenta a potência:
talvez se comer a criança
fique cheio de pujança."
Ele foi pela calada,
estava escuro como breu.
Tinha a testa suada
e nos lábios - uma mentira ensaiada:
"Filho, és feliz? Não me quero intrometer,
mas nunca sonhas com o Céu?
Nunca quiseste morrer?"
Alves pestanejou duas vezes
mas não ripostou.
O pai tacteou o punhal
e a sua gravata aliviou.
Pegando no filho ao colo,
Alves pingou-lhe a lapela.
Levando a concha aos lábios,
despejou-o pela goela.
Depressa o enterraram na areia junto ao mar
- uma prece rezaram, uma lágrima derramaram -
e para casa voltaram à hora do jantar.
A camp do Rapaz Ostra foi marcada com uma cruz.
Palavras escritas na areia
prometiam a salvação de Jesus.
Mas a sua memória perdeu-se numa onda de maré-cheia,
De volta à paz do lar,
ele beijou-a a arfar:
"Que tal uma rapidinha?"
"Mas desta vez", sussurrou ela, "quero uma rapariguinha."
A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias, escrito e ilustrado por Tim Burton, esse Edgar Allan Poe dos tempos modernos, pela primeira vez numa edição portuguesa de fácil acesso. Uma recolha de contos tradicionais saídos da mente de Burton, em brilhante tradução. Inclui, além da história do rapaz ostra, as lindas fábulas do rapaz nódoa, do rapaz torresmo, de Crispim, o hediondo rapaz pinguim, do rapaz com pregos nos olhos e da rapariga com olhos fora de série, entre muitas outras, num total de 23. É de guardar junto à mesinha de cabeceira para soninhos descansados, antes que seja tarde. Encontra-se (por enquanto) em qualquer livraria.
à beira-mar se casaram.
Na ilha de Capri celebraram
esse tão grande momento.
À ceia jantaram um prato sobejo;
uma bela caldeirada de peixe e marisco.
E, enquanto ele saboreava o petisco,
no seu coração ela pediu um desejo.
O seu desejo tornou-se realidade: teve um bebé.
Mas seria um ser humano?
Pois é,
na verdade,
tinha dez dedos nos pés e nas mãos,
tinha visão e circulação.
Podia ouvir, podia sentir,
mas seria normal?
Isso não.
Este nascimento aberrante, este cancro, esta praga
foi o princípio e o fim de toda uma saga.
Ela zangou-se com o doutor:
"Esta criança, não é minha.
Cheira a maresia, a salmoura e a tainha."
"Olhe que tem sorte, ainda a semana passada
tratei de uma miúda com crista e rabo de pescada.
Se o seu filho é meio ostra
não me venha acusar...
...já pensou por acaso
numa casinha à beira-mar?"
Sem saber que lhe chamar,
chamaram-lhe Alves,
ou, às vezes,
"aquela coisa da espécie dos bivalves."
Toda a gente se perguntava, mas ninugém sabia
quando é que da concha o Rapaz Ostra saía.
Quando os quatro gémeos Lopes um dia o foram ver,
chamaram-lhe amêijoa e desataram a correr.
Num dia azarado,
Alves ficou encharcado
à esquina da rua Miramar.
Cabisbaixo,
viu a chuva rodopiar
pela sarjeta abaixo.
Na auto-estrada, a sua mãe,
à beira de um esgotamento,
esmurrava o painel dos instrumentos -
não conseguia conter
a dor crescente,
a frustração
que a fazia sofrer.
"Olha, querido", disse ela,
"isto não é para ter piada,
mas eu já não pesco nada
e acho que é do nosso filho.
Não gosto de o dizer, pois sou a mulher que te ama,
mas tu culpas o nosso filho pelos teus problemas na cama."
Ele bem se aplicou, com muito denodo;
tentou salvas e unguentos
que lhe faziam comichões,
tintura de iodo,
mezinhas e poções.
Coçou-se e sangrou e esmifrou-se todo.
Até que o médico diagnosticou:
"Eu não sei de ciência,
mas a cura do seu problema pode ser o que o causou.
Dizem que comer ostras aumenta a potência:
talvez se comer a criança
fique cheio de pujança."
Ele foi pela calada,
estava escuro como breu.
Tinha a testa suada
e nos lábios - uma mentira ensaiada:
"Filho, és feliz? Não me quero intrometer,
mas nunca sonhas com o Céu?
Nunca quiseste morrer?"
Alves pestanejou duas vezes
mas não ripostou.
O pai tacteou o punhal
e a sua gravata aliviou.
Pegando no filho ao colo,
Alves pingou-lhe a lapela.
Levando a concha aos lábios,
despejou-o pela goela.
Depressa o enterraram na areia junto ao mar
- uma prece rezaram, uma lágrima derramaram -
e para casa voltaram à hora do jantar.
A camp do Rapaz Ostra foi marcada com uma cruz.
Palavras escritas na areia
prometiam a salvação de Jesus.
Mas a sua memória perdeu-se numa onda de maré-cheia,
De volta à paz do lar,
ele beijou-a a arfar:
"Que tal uma rapidinha?"
"Mas desta vez", sussurrou ela, "quero uma rapariguinha."
A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias, escrito e ilustrado por Tim Burton, esse Edgar Allan Poe dos tempos modernos, pela primeira vez numa edição portuguesa de fácil acesso. Uma recolha de contos tradicionais saídos da mente de Burton, em brilhante tradução. Inclui, além da história do rapaz ostra, as lindas fábulas do rapaz nódoa, do rapaz torresmo, de Crispim, o hediondo rapaz pinguim, do rapaz com pregos nos olhos e da rapariga com olhos fora de série, entre muitas outras, num total de 23. É de guardar junto à mesinha de cabeceira para soninhos descansados, antes que seja tarde. Encontra-se (por enquanto) em qualquer livraria.
Etiquetas: A Morte Melancólica do Rapaz Ostra, Literatura, Tim Burton
Correcção: Pela segunda vez numa edição portuguesa de fácil acesso.
Eu tenho um exemplar da 1º edição... já tens uns anos valentes!
fevereiro 23, 2007
Tenho conhecimento dessa edição. no entanto, desapareceu tão depressa como apareceu. Desta vez existem, parece-me, mais cópias do livro.
fevereiro 24, 2007
Sim, já o vi por aí. Mas pareceu-me ter só desenhos, o que, não desfazendo deles, não é género de livros que compre. Também tem texto?
fevereiro 24, 2007
Sim sim.
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